Da equipe Tuntistun (Sandro Hirsch)
Para velhos amantes de música eletrônica como eu, acompanhar a trajetória do mago Laurent Garnier é como testemunhar a passagem do tempo.
Isso ficou claro dias atrás, quando tive o privilégio de presenciar in loco um marco na longa carreira do DJ e produtor francês: o lançamento de um documentário sobre ele no maior cinema da Europa, e a festa memorável que se seguiu.
O cinema Le Grand Rex, no coração de Paris, ficou pequeno para tanta gente na estreia de “Off The Record”, que conta a história do house e do techno entrecruzada com um perfil do próprio Laurent. Os mais de 2500 assentos, espalhados por majestosos mezaninos no estilo sala de ópera, estavam tomados por pessoas que, em sua maioria, se pareciam comigo – homens e mulheres grisalhos, acima dos 35 anos, provavelmente fazem desde os longínquos anos 90.
O público parecia de estádio. Gritava e assobiava antes mesmo de o filme começar. Imaginem a intensidade das palmas quando o próprio Laurent apareceu no palco, ao lado do diretor e da equipe técnica, para dar as boas vindas.
A maioria do público usava máscara, embora não fosse obrigatório naquele momento. O controle da Covid-19 na França é feito principalmente por meio do passe sanitário, que é uma espécie de comprovante de vacinação completa ou teste Covid-negativo. Sem passe, ninguém entra.
“Off The Record” não é um primor de documentário. O roteiro é enrolado e não traz nada de novo para quem é fã. Mesmo assim, é uma delícia de se ver, principalmente pela paixão transbordante que move o Laurent de cena em cena. Afável e humilde, ele é capaz de passar um dia inteiro numa escola conversando com crianças sobre as emoções que a música suscita. Eh um dos trechos mais tocantes do filme. Laurent não gosta de techno, mas de MÚSICA, assim mesmo, em caixa alta. Ele fala com a mesma vibração de rock que de UK garage. Sua coleção de vinil de funk/soul se estende por quase dois metros de muro.
Não conheço outro artista capaz de atrair admiração de DJ com sensibilidades tão diferentes – desde Lenny Dee, o Pelé do techno hardcore, até o houseiro DJ Deep. Os depoimentos desses mestres são outro ponto alto do filme. “Laurent quer te levar às lágrimas, ele quer que você mergulhe suas emoções na música”, profere Carl Cox. “”Laurent é o DJ que outros DJs saem de casa para ver tocar porque sempre se aprende algo com ele,” derrama-se Jeff Mills.
Algumas imagens exclusivas valem muito a pena. Como quando a câmera flagra Laurent tetanizado de nervoso antes de começar um set para milhares de pessoas. Ou quando o DJ retorna ao suntuoso salão da Embaixada da França em Londres, onde trabalhou como mordomo ao sair da adolescência.
O documentário também narra os perrengues na luta pela aceitação da música eletrônica, difamada e reprimida na porrada até mesmo na Europa. Duas décadas depois, o triunfo do Laurent no cinema mais icônico de Paris e a cobertura admirativa dos maiores veículos de comunicação da França soam como revanche. Mas essa conquista simbólica também prova o quanto o tempo passou, para o Laurent e para nós que o acompanhamos.
Essa constatação me acompanhou na etapa seguinte da noite, quando o público – ou parte dele – se deslocou ao fim do filme para o outro Rex, o club, situado logo abaixo do cinema.
O Rex é a casa do Laurent. ‘E o lugar onde ele toca há trinta anos. Foi no Rex que Laurent trouxe pela primeira vez à França os DJs norte-americanos que fundaram o house e o techno. É um espaço exíguo e longilíneo, pouco maior que uma quadra de futsal. O teto é baixo, e as bebidas são mais baratas que a média parisiense. Para ser barrado na porta do Rex, só se comportando muito mal ao tentar entrar.
Naquela noite, a pista estava cheia de rostos bem vividos e dress code meio careta. Vi muito sapato social e nenhum corte de cabelo arrojado. Era o típico público que a garotada chamaria de coroa. Eu me senti em casa, mas duvido que o sentimento seria o mesmo se não fosse uma noite especial Garnier. Nas poucas vezes em que ainda saio, ou seja, antes da pandemia, um incômodo sentimento de deslocamento etário me persegue.
Ao contrário do cinema, ninguém usava máscara dentro da boate.
Quem abriu a noite foi o DJ e produtor Pedro Winter, ex- chefão dos Daft Punk e dono do selo Ed Banger. Seu set começou com lentas batidas de soul e disco e rapidamente evoluiu para um electrohouse nervoso. Não era nem meia-noite e meia e a galera já gritava eufórica.
Dançando no meio da pista, notei que o kick havia enveredado para batidas mais rápidas e suingadas. Me aproximei da cabine e minhas suspeitas se confirmaram: Laurent já estava no comando. Fiquei arrepiado, sorrindo longamente, ao perceber o quanto eu havia esperado por esse reencontro com a muvuca suada e com a excelência musical ao vivo e a cores. Que falta eu havia sentido desses inferninhos. E que tristeza lembrar das tantas perdas que a pandemia nos impôs. Deus nos preserve de tudo aquilo de novo.
O tempo passa para o bem e para o mal, mas Laurent Garnier, meus amigos e minhas amigas, continua sendo o melhor DJ do mundo. O domínio da pista é absoluto. As mixagens são um absurdo de ousadas e precisas. A mente se deleita com tantas texturas e paisagens sonoras. Laurent, aos quase 56 anos, rugas pronunciadas e vários problemas de audição, continua se divertindo nas picapes tanto quanto quem está na pista.
A noite deu uma guinada abrupta à 1h30, quando Laurent cedeu a cabine para a Blessed Madonna, DJ norte-americana de ascensão fulminante. Ela estragou o clima ao tocar músicas horríveis, incluindo uns technos hiper acelerados cheios de sirene, e mixou muito mal. Era visível o fluxo de gente indo embora da pista rumo ao bar – ou à saída da boate. Ninguém entendeu como alguém tão despreparado pode chegar a esse nível de exposição.
Eu teria tolerado melhor se fosse dez anos mais novo? Provável. A idade nos deixa mesmo mais exigentes.
Laurent retomou as picapes às 3h e conseguiu reenergizar a pista, alternando bombas secretas e clássicos, como “I feel Love” e “Crispy Bacon.” Feliz, mas visivelmente exausto depois da longa jornada cinema + balada, Laurent se despediu às 5h e pouco, algo impensável até pouco tempo atrás para quem sempre adorou tocar até o amanhecer. Laurent está ficando velho, e eu também. Mesmo com fôlego para aguentar até o fechamento da balada às 7h, decidi ir para casa. Contente com tudo, mas ciente de que noites assim serão cada vez mais raras.
Veja um pequeno trecho da festa: