As raízes dos Sound System Parte 1
(trecho do livro Last Night a Dj Saved my life de Bill Brewster e Frank Broughton)
Como ponto de encontro de influências africanas, europeias, norte-americanas e nativas, o Caribe possui uma surpreendente variedade de culturas musicais. A Jamaica acrescentou algo mais que tornaria sua música radicalmente diferente – o Sound System: enormes conjuntos móveis de amplificadores e alto-falantes projetados para tocar discos ao ar livre com o máximo de impacto possível.
Dirigido por heróis extravagantes da vizinhança, um Sound System (muitas vezes chamado apenas de ‘som’) desfruta do mesmo tipo de apoio popular que um time de futebol local. Há danças regulares em Kingston e nas cidades menores as pessoas aguardam cada uma com verdadeira emoção.
Primeiro os pôsteres com letras coloridas sobem e, alguns dias depois, o som chega, suas intermináveis caixas de alto-falantes enchendo a traseira de um caminhão. O equipamento é montado geralmente em um pátio especialmente construído (um ‘salão de dança’ que raramente fica dentro de casa), os ingressos são vendidos e a festa começa.
O Sound System resultou de uma combinação de fatores sociais peculiares à Jamaica. Em um país com renda geralmente baixa, era improvável que as pessoas gastassem muito dinheiro em discos para tocar em casa, mas, como todo mundo, queriam se reunir e dançar.
Em outras ilhas do Caribe, as pessoas atenderam a essa necessidade festejando ao som da música enraizada no século 19 – salsa, soca, samba, calipso – mas na Jamaica a música folclórica local, o Mento, não gozava nem de perto do mesmo domínio. E quando a Jamaica começou sua rápida urbanização do pós-guerra, seu povo procurou uma trilha sonora mais assertiva para suas novas vidas na cidade.
Eles encontraram isso em grande parte na música americana e influenciada pelos americanos. Havia muitos emigrantes vivendo nos Estados Unidos que enviavam discos, e a Jamaica estava perto o suficiente do continente americano para receber transmissões de rádio de WINZ em Miami, WLAC em Nashville e WNOE em Nova Orleans, entre outros.
Em noites claras, o som de artistas como Fats Domino, Amos Milburn, Roy Brown e Professor Longhair flutuava nos transistores AM de milhares de jamaicanos, colocando a música de Memphis e Nova Orleans – com sua batida sincopada – no coração dos gostos musicais da ilha. (Os favoritos posteriores que tiveram uma influência importante foram Otis Redding, Sam Cooke, Solomon Burke, Ben E King, Lee Dorsey e especialmente Curtis Mayfield.)
Grande parte da produção musical da Jamaica pode ser vista como uma resposta a esses sons americanos importados: ska, rocksteady e, mais tarde, o reggae, que cresceu em grande parte a partir de interpretações locais dessa música.
A música mais popular do pós-guerra foi o swing das big bands. Embora já existissem “danças de orquestra” nos anos quarenta, apenas algumas bandas jamaicanas conseguiram recriar esse estilo, e muitos músicos foram perdidos por causa da emigração.
De qualquer forma, músicos ao vivo eram uma maneira cara de encher um salão de dança. Como um DJ sozinho podia tocar o melhor da música americana – e não precisava de dezenas de cervejas e muitos outros agrados – era difícil para os músicos ao vivo competirem.
O rádio também ajudou a causa do Sound System. A rádio jamaicana era extremamente conservadora; tanto o RJR (um serviço de rádio a cabo) quanto o JBC, modelado pela BBC, tinham políticas de transmissão bastante elitistas. Por muito tempo eles se recusaram a tocar reggae, a música do povo. Sua prática deixou uma grande lacuna e os Sound System a preencheram.
Os Sound System também eram parte integrante da vida política jamaicana. Com a jornada para a independência, concedida em agosto de 1962, e em meio à tumultuada política que se seguiu, havia um forte espírito revolucionário na ilha.
O reggae e suas formas associadas surgiram como música rebelde, a voz da oposição, e os Sound System se tornaram uma parte importante disso. Os DJs muitas vezes satirizavam assuntos atuais e eventos locais, assumindo o antigo papel do cantor do mento menestrel.
Livres de quaisquer restrições de transmissão, e muitas vezes aliados a determinados grupos políticos (ou pelo menos a gangues locais no bolso de um determinado partido), eles tiveram uma influência poderosa ao conversar sobre a música para centenas de pessoas. Os políticos avaliavam sua popularidade pelo clima nas pistas de dança.
Na eleição de 1972, essa conexão entre música e política foi intensificada quando Michael Manley conquistou a vitória depois de aliar seu Partido Nacional do Povo, de extrema esquerda, à causa rastafari. Ele escolheu o reggae para sua música de campanha (“Better Must Come”, de Delroy Wilson) e passou a segurar a “vara de correção” que recebeu do imperador da Etiópia Haile Selassie, o deus vivo dos Rastas.
O rastafarianismo é uma religião baseada nos ensinamentos dos anos 1930 de Marcus Garvey, que liderou um movimento de volta à África e profetizou que o “Deus da Etiópia” livraria o homem negro de seu sofrimento.
Haile Selassie (cujo nome de nascimento era Duke, ou ‘Ras’, Tafari) foi considerado adequado. Com sua atitude ‘Dread inna Babylon’, o rastafarianismo pode ser visto como o movimento hippie da Jamaica; um credo de volta à natureza que se opunha ao poder estabelecido, parou de cortar o cabelo e viu a maconha como um sacramento sagrado.
A sociedade bastante heterossexual da Jamaica via os Rastas como pouco mais do que desistentes desalinhados, até o final dos anos sessenta, quando se tornaram os heróis da contracultura da ilha – um papel simbolizado por Bob Marley, um tipo John Lennon jamaicano. Em 1976, música e política estavam tão entrelaçadas que Marley foi vítima de uma tentativa de assassinato.
O importante papel do Sound System na vida pública surgiu de origens muito mais humildes – o hábito de usar a música pública como método de promoção de vendas. Lojas de bebidas e lojas que vendiam discos e equipamentos eletrônicos colocavam alto-falantes na rua e tocavam música para entreter e atrair os transeuntes. Aos poucos, os varejistas tiveram a ideia de ampliar isso e levar a música para as pessoas (e vender bebida ao mesmo tempo).
Os Sound System mantiveram essa estreita conexão com o comércio de bebidas alcoólicas, e o fato de o som mais popular gerar o maior lucro com as vendas de bebidas sempre encorajou uma concorrência acirrada. Valeu a pena investir dinheiro nos melhores discos, nos alto-falantes mais altos e nos DJs mais divertidos.
O DJ pega o microfone
À medida que os Sound System colocavam todos os seus recursos criativos para vencer seus rivais, eles começaram a realmente expandir o leque de possibilidades do DJ. Ao transformar a música gravada em um show ao vivo único, o DJ sempre se esforçou para adicionar emoção sempre que possível.
Os engenheiros que construíram os sistemas já estavam aumentando fortemente a potência dos graves de seus alto-falantes para aumentar a potência da música. Os DJs já estavam viajando por toda parte em busca de discos exclusivos. Os próximos passos teriam que ser grandes.
A primeira grande mudança foi a adição de um elemento vocal ao vivo, na forma de rimas e colocando a personalidade do DJ. Inspirado pela criatividade verbal dos DJs das rádios norte-americanas, o DJ jamaicano dividiu seu papel e acrescentou um locutor para o time.
Agora, em vez de uma única figura tocando e anunciando discos, havia dois – o seletor e o deejay, também chamado de MC (mestre de cerimônias). Hoje em dia, esses artistas são as maiores estrelas da música jamaicana, com DJs como Yellowman, Shabba Ranks, Buju Banton e Beenie Man desfrutando da mesma fama e adoração mundial que estrelas do rock ou rappers.
O DJ/MC deu seus primeiros passos por volta de 1956. Winston ‘Count’ Machuki, que tocava discos desde 1950, primeiro para Tom the Great Sebastian e depois para Coxsone’s Downbeat, decidiu fazer mais do que apenas apresentar as músicas.
“Eu disse ao senhor Dodd: ‘Dê-me o microfone'”, lembrou Machuki em The Rough Guide To Reggae, de Steve Barrow. “E ele me entregou o microfone, comecei a soltar minhas piadas, e o senhor Dodd estava a favor. E comecei a tentar minhas frases em Coxsone, e ele me deu uma ou duas piadas também. Eu os repetia a noite toda naquele sábado no Jubilee Tile Gardens. Todo mundo caiu nessa. Tomei mais bebida do que conseguia beber naquela noite.’
Machuki estava longe de estar satisfeito e achou que poderia acrescentar mais ao seu desempenho. Arriscando uma edição da revista Jive do Harlem, ele começou a absorver a gíria da América negra, o estilo de rima legal que os DJs das rádios americanas estavam usando para apresentar seus discos. Logo ele experimentou suas próprias composições. Ele se lembra de sua primeira: ‘If you dig my jive/ you’re cool and very much alive/ Everybody all round town/ Machuki’s the reason why I shake it down/ When it comes to jive/ you can’t whip him with no stick.’
Machuki também começou a prática de adicionar pequenos cliques e batidas vocais – antecipando como ‘beatboxes’ do rap em vinte anos – que ficou conhecido como ‘peps’ porque animavam o disco. ‘Há momentos em que os discos tocando soavam, na minha opinião, devagar, então eu colocava alguns estímulos, ‘chicka-a-took, chicka-a-took, chicka-a-took’,’ diz Machuki . “Isso criou uma sensação.” Ele se lembra com orgulho que as pessoas algumas vezes compraram discos específicos em que suas contribuições ao vivo foram incluídas, e depois voltavam às lojas quando percebiam que não tinha o trecho dos vocais e participações que eram ouvidas nas pistas. “Eles não sabiam que era a injeção de Machuki na pista de dança”, ele ri.
O segundo grande DJ foi King Stitt, cuja dança enérgica o levou, em 1957, a se tornar o substituto de Machuki, e cujas feições congenitamente distorcidas o levaram a se chamar de “The Ugly One”.
Nesta fase, o DJ ainda estava selecionando os discos e trabalhando no microfone, e embora Stitt tenha sido o primeiro a mostrar que o DJ podia transferir suas habilidades verbais para o vinil – ele fez alguns discos de sucesso com o produtor Clancy Eccles no final dos anos sessenta, como ‘Fire Corner’ e ‘Lee Van Cleef’ – mas foi apenas no início dos anos setenta que o ofício de deejay começou a ser levado a sério.
Como U-Roy, Ewart Beckford levou o papel do DJ a novos níveis. U-Roy era um artista tão magnético que conseguia prender a atenção do público mesmo sem música de apoio, um fato comprovado quando a chuva o forçou a desligar os amplificadores em uma pista de dança que ele estava tocando e ele manteve os dançarinos encantados apenas com sua voz.
Ele fez uma série de discos, produzidos por Duke Reid, que provaram o quão popular o DJ se tornou. Usando as faixas instrumentais de gravações rocksteady existentes, com suas letras rimadas gravadas por cima, ‘Wake The Town’, ‘Rule The Nation’ e ‘Wear You To The Ball’ fizeram tanto sucesso que em uma semana em 1970 eles detinham o topo de três lugares na parada pop da Jamaica.
U-Roy ficou confuso com tal sucesso. “Na época era uma piada”, disse ele a David Katz. “Um DJ é apenas uma pessoa que vem para um baile, ele fala no microfone e coloca discos e lê o convite onde o próximo baile vai ser. Quem poderia dizer que essa coisa chegaria assim, pessoas tendo o número um nas paradas!’
Carl Gayle, editor da revista Jahugliman de Kingston, tentou explicá-lo: “O que separa U-Roy do resto é o fato de ele ter dado ao reggae essa dimensão ao vivo que é tão eletrizante. Com sua fala de Kingston, ele vira a mesa em uma cena jamaicana cheia de talentos cantores, abrindo caminho para um salão de dança cheio de imitadores.” E com certeza, depois do sucesso de U-Roy veio Big Youth, I-Roy, Dillinger e mais uma centena de DJs, roubando os holofotes dos cantores.
PARTE 2 EM BREVE!